terça-feira, julho 05, 2011


Chiquinho: de um estado de sofrimento, conheceu nos seus últimos dias a compaixão humana.

Logo após a partida de Chiquinho, resolvi escrever, no mesmo dia, sua história. Embora sua passagem pela minha vida e da minha esposa tenha sido muito breve, ela nos marcou muito devido à situação em que nos deparamos com aquele cãozinho. A primeira página da narrativa saiu sem dificuldade, mas a partir do momento em que a narrativa começou a avançar em direção ao seu final, senti dificuldade em escrever. Cada linha que escrevia me lembrava do Chiquinho e isso me doía muito. Após cinco dias, retomei a escrita e consegui concluir a história que se inicia abaixo:

Era uma quinta-feira de 2011, feriado de Corpus Christi, e estávamos indo ao centro da cidade almoçar quando observei um cachorrinho caminhando meio trôpego do lado esquerdo da rua, acompanhando a fileira de carros estacionados ao longo da via. Fiquei triste ao ver aquele animal naquela situação. Era mais um, das centenas de animais abandonados que vagam pelas ruas e avenidas da cidade de Macaé.  Minha esposa também viu o animal, mas imediatamente mudou a direção de seu olhar orando a Deus, postura que adotou após ter feito mais de 60 resgates em 4 anos na cidade e diante da impotência em não poder fazer mais do que já faz... Esta realidade a fazia sofrer muito. Eu continuei a olhar o pequeno cão pelo retrovisor e notei que ele havia sido derrubado, acidentalmente, ou não, por um indivíduo que seguia em sua bicicleta. Fiquei revoltado, tanto pela queda do animal, quanto pelo fato de o indivíduo debochar do animalzinho e começar a dar risada. Meu sangue subiu e imediatamente parei o carro para desabafar toda a minha indignação por aquilo que acabara de presenciar. Foi um ato totalmente emocional e poderia ter acontecido algo mais grave comigo ou com minha esposa, já que eu estava enfurecido e não sabia com quem estava lidando.  Além do mais, notei que o indivíduo não estava sozinho, por isso procurei ficar calmo.  Os dois homens seguiram seu caminho após justificativas e me desculpei pra evitar maiores conflitos. Percebi que ao dobrarem a esquina, eles voltaram a dar risada, agora não do animal, mas de mim. Ignorei aquilo.
Quando me dei conta, minha esposa, também, estava fora do carro e ido atrás do cãozinho. Ela gentilmente o pegou em seus braços e levou para a segurança do nosso carro. O animalzinho estava bem mal, era um poodle idoso cuja cor dos pêlos variava do marrom claro ao quase preto. A variedade de cores era devido ao fato do animal estar bem sujo, sem tratamento algum, e alguns pêlos estarem queimados devido ao sol. Embora tivesse muito pêlo, estava subnutrido e uma secreção escorria de seu focinho. Os seus olhos estavam bem esbranquiçados, evidenciando que ele era cego. Seu cheiro de carniça era quase insuportável. Imaginamos que ele tinha algum ferimento na boca ou na parte interna de seu focinho, talvez provocado por algum atropelamento.

Levamos o animal imediatamente para uma veterinária amiga que deixou seu descanso para atender com amor àquela vida. Logo depois de medicado, seguimos com ele para nossa casa. Chegando lá, colocamos o animal no canil que é bem espaçoso para um cão pequeno (cabe até dois cachorros grandes) e possui na parte de trás casinha feita de alvenaria com todo conforto. Assim, ele ficaria isolado dos nossos sete e não aconteceria nenhum incidente. Além disso, não sabíamos se o animal tinha ou não alguma doença contagiosa e por isso o isolamento era uma precaução necessária. No canil, ele caminhava de um lado para o outro, com dificuldade. Sua respiração fazia um ruído estranho, provavelmente devido à secreção que deveria se acumular em sua fossa nasal e constantemente escorria. Como isso provavelmente o atrapalharia na hora de se alimentar, minha esposa, cerca de uma hora antes molhava a ração para que amolecesse para não machucar a boca. Foi no final desse dia que observamos um pouco de sangue, misturado à secreção, escorria de seu focinho. A vasilha de água ficava toda suja de sangue e fedendo, tendo que ser trocada toda hora.

No dia seguinte ele começou a piorar e corremos para a veterinária e doeu na gente a agulhada em sua patinha magrinha para colher sangue. Logo que o sangue foi colocado no tubo de ensaio e lacrado, uma nítida separação em duas fases, uma bem clara e outra escura, já dizia que o animal estava pelo menos com anemia. Seus ouvidos estavam infeccionados e quando eu achei que aquilo era tudo, ainda viria o pior. Ao examinar com mais detalhes a boca do animal, a veterinária viu um grande buraco em seu palato, fazendo uma comunicação entre a boca e a fossa nasal. Envolto a essa cavidade aberta havia muito tecido morto, provavelmente a fonte de tanto mau cheiro. Era por isso que ele fazia aquele ruído diferente enquanto respirava e tinha dificuldade para comer algo mais sólido: a comida sólida provavelmente feria o local lesado ou mesmo poderia obstruir sua fossa nasal. A veterinária não sabia se aquele ferimento era devido a alguma doença que se desenvolveu ou se foi fruto de alguma pancada que destruíra a parte óssea interna de sua boca. Apesar de o animal estar muito debilitado e num estado lastimável, víamos que ele queria viver. Queríamos o melhor para ele, mas sem que sofresse. Chegando em casa, minha esposa deu um medicamento para combater o quadro infeccioso na parte interna de sua boca e dipirona para amenizar a dor. Remédio também foi aplicado em seus ouvidos. Medicado e alimentado, restava aguardar e esperar pelos resultados do exame de sangue.
O animal havia ganhado minha confiança e principalmente da minha esposa. Era ela que o alimentava, medicava e ficava a maior parte do tempo com o cãozinho. Foi na 3ª noite que demos o nome para nosso protegido: Chiquinho, apesar de não sermos católicos temos grande carinho por São Francisco de Assis protetor dos animais e este nome foi em sua homenagem. Neste dia percebemos que Chiquinho não havia melhorado. Havia comido bem menos que nos dias anteriores e parecia ter mais dificuldade para respirar. Quando resgatamos Chiquinho sabíamos que dificilmente ele adotado. Afinal, quem pegaria um cão cego e idoso? Pensamos em enviar Chiquinho para um abrigo, pois não temos condições de ter mais animais. Lá ele talvez pudesse ter a chance de ser adotado e, caso não fosse, teria um local seguro para ficar até o final de sua vida. Como Chiquinho não melhorava, naquela noite repensamos na idéia do abrigo. Ele agora seria enviado só depois que estivesse mais forte e melhorado da seqüela que tinha. Mesmo assim iríamos repensar sobre o assunto. Nesta noite dormi muito mal. Estava agoniado com aquela situação. Estávamos fazendo o melhor para Chiquinho, mas parecia que não estava dando muito resultado.

Na manhã do 4º dia, minutos antes de seguir para o trabalho, fui até o canil para ver como ele estava. Não me aproximei muito, mas notei algo estranho pendurado em sua boca. O chão do canil estava todo ensangüentado. Avisei minha esposa e sai para o trabalho com o coração apertado.

Chegando ao trabalho já estava prevendo o pior, pois a cena do sangue no canil e aquele negócio saindo da boca dele não podia ser boa coisa. O telefone tocou pouco mais de uma hora depois que havia saído de casa. Era minha esposa. Ela estava desesperada e me relatou o estado de Chiquinho. O que pendia da boca dele era na verdade a carne necrosada do interior de sua boca e que agora estava sendo expulsa para fora, provavelmente devido ao remédio que estava fazendo efeito sobre aquela infecção. Não imagino a dor e sofrimento que ele estava sentindo, pois estava tendo uma hemorragia. Cheguei em casa e auxiliei minha esposa a pegá-lo para levar à clinica veterinária. Não era algo muito fácil sair de casa com um cão naquelas condições, já que temos mais oito cães curiosos que vivem soltos. O envolvemos numa manta e carregamos com cuidado até o carro. No trajeto até a veterinária ele não parecia muito assustado. Somente quando o carro balançava um pouco mais que se mexia. Pouco antes de chegarmos à clínica, minha esposa disse que ele parecia tranqüilo, envolto pelos braços de minha esposa e com a cabecinha repousada sobre seus braços. Sua respiração estava menos ofegante, como se ele estivesse mais aliviado, já se rendendo a uma situação que era inútil lutar.
A veterinária nos disse logo que viu Chiquinho que seu estado de saúde era bem delicado e difícil. Naquelas condições, um ou dois dias na rua Chiquinho já estaria morto. Minha esposa e eu estávamos arrasados e a veterinária nos disse que Chiquinho teria uma pequena chance de sobreviver, mas que seria uma vida breve com dor e sofrimento diante do quadro exposto. Essa conversa inicial foi à última coisa que precisávamos para decidir o destino de Chiquinho. Após vivermos todo aquele sofrimento decidimos pela eutanásia, pois qualquer outro procedimento seria prolongar sua dor que provavelmente era insuportável. Estávamos tristes, mas aquela era a decisão mais correta a ser feita diante daquela situação. A veterinária nos confortou dizendo que estávamos fazendo o correto, o mais humano. Afinal, havíamos recolhido Chiquinho das ruas e dado a ele uma chance de se recuperar nos dias que ele conviveu em nosso lar. Infelizmente ele estava muito debilitado e havia perdido muito sangue nos dias em que ficara nas ruas. O que mais nos angustiava naquele momento era o sofrimento daquela vida. Era quase dez horas da manhã de segunda-feira quando Chiquinho foi posto numa mesa e sedado sendo confortado pela minha esposa que ficou junto até o procedimento anestésico e quanto saiu da sala ele dormia e não sentia mais dor. Quando Chiquinho foi sedado, eu me encontrava do lado de fora da sala de consulta e minha esposa é que me deu a notícia da sedação ao sair. Ela me encontrou com olhos marejados e perguntou se eu havia chorado. Respondi que sim, mas que agora estava mais aliviado. Minha esposa também chorava. Como podemos chorar por um animalzinho que mal conviveu conosco? Afinal, Chiquinho não chegou a ficar quatro dias conosco. Choramos pelo seu sofrimento e por pensar em como o ser humano era capaz de deixar um animal naquele estado e não fazer nada... Chiquinho teve a felicidade de ser encontrado por nós e ter conhecido a bondade humana nos seus últimos dias de vida.

Naquele dia, após sair da clinica fiquei um pouco mais aliviado, porém ainda sentia uma angústia em meu peito. Deixei minha esposa em casa e fui trabalhar, pelo menos, tentar trabalhar. A imagem de Chiquinho, todo frágil e doente andando de um lado para o outro no canil não saía de minha mente. Meus olhos marejaram quando minha esposa ligou dizendo que, ao limpar o canil, sentira a presença do Chiquinho e uma sensação de alívio preenchera seu coração. Era pouco mais de onze e meia da manhã. Agora sim, diante da minha crença, acreditava que Chiquinho já estava liberto daquele corpinho maltratado, doente, e estava em outro corpinho ou em outro plano. Apesar do telefonema consolador, almocei mal e só melhorei no dia seguinte.

Eu e minha esposa esperamos que Chiquinho esteja bem, onde quer que esteja agora. Se sua alma está agora em outro corpinho, que desta vez ele possa ser recebido por uma família carinhosa desde seus primeiros dias de vida e ter uma boa qualidade de vida até o final de seus dias, como merece todos os seres criados por Deus.

Um protetor.